sexta-feira, 25 de maio de 2012

Maria das Graças banca uma creche no Guará II com a própria aposentadoria

 
Assim como ter talento para a medicina ou para as artes, fazer o bem pode ser uma vocação. É o sentimento que transmite Maria das Graças Cardoso, 62 anos, a Vovó Graça, dona da Creche Comunitária Estrela Guia, no Guará II. Há cinco anos, a senhora de jeito acolhedor e sotaque nordestino cuida de 60 crianças, de 2 a 5 anos, durante todo o dia, sem cobrar nada. Com a ajuda de (poucos) voluntários, oferece, além de alimento e conforto, algo ainda mais durável: o afeto.

Quem chega ao local, próximo à QE 40, é recebido pelas crianças com abraços sinceros. Os pequenos braços são carentes de alguém em quem se aconchegar. São filhos de mães solteiras, quase sempre. Mulheres que trabalham como empregadas domésticas e antes não tinham com quem deixar as crianças. A mãe de Graça, Ofélia Cardoso, exercia a mesma profissão, no Piauí. “Eu era criança e ficava com meus dois irmãos, para minha mãe trabalhar. A gente morava em Teresina. O mundo não tava tão perigoso e a gente podia contar com os vizinhos, se tivesse emergência”, lembrou.

Graça mudou-se da terra natal cedo, na adolescência. Queria estudar no Rio de Janeiro. Sonhava ser professora. Conseguiu. Formou-se normalista e dava aula para crianças. Anos depois, em 1973, passou a viver no Distrito Federal, em Ceilândia, quando o marido, um vigilante, foi transferido para a capital. Aqui, o casal teve sete dos nove filhos. Antes que eles pudessem crescer, o pai foi embora. Ficou para Graça a tarefa de criar os pequenos sozinha. “Eu tive muito medo do que podia acontecer. Em uma cidade grande, com violência e drogas. Levei todos para a igreja e conversava muito com eles.”

A mãe teve de repetir o que viu na infância: deixava o filho mais velho, de 12 anos, cuidando dos outros oito para poder trabalhar. “Eu ficava com a cabeça o tempo todo em casa. Pensava que eles podiam se machucar. Deixava o almoço pronto, tudo no lugar certo, e ia trabalhar de coração na mão. Não tinha outro jeito. Não dava para pagar alguém.”

Depois de ver os rebentos adultos, Graça aposentou-se como professora. Certo dia, uma vizinha bateu à sua porta. Precisava deixar o filho com ela. Não havia outra opção. Era para ser só uma vez. Mas o pedido tornou-se frequente. Outra vizinha soube que Graça levava jeito com as crianças. Implorou para ser socorrida também. Graça, que não sabe dizer não, fez da própria casa uma creche.

O número de crianças aumentou. Era preciso “profissionalizar” os cuidados. Anos depois, Marcelo, um dos filhos de Graça, conseguiu um terreno no Guará II. A mãe não pensou duas vezes e quis erguer uma creche. O rapaz concordou. Construiu quartinhos de madeira frágil. A casa passou a receber meninos e meninas que não tinham onde ficar.

Eles vinham de Águas Lindas (GO), Samambaia e outros lugares. Graça esperava a ajuda do governo, que nunca chegou. Gostaria também de contar com apoiadores, que não apareceram em grande quantidade. Mesmo assim, meses depois, conseguiu melhorar as instalações e transformou os cômodos usando tijolos e cimento. Os pais doaram seu tempo, aos fins de semana, para ajudar nas obras. “Eu costumo dizer que estou sempre com o pires na mão, pedindo alguma coisa”, afirma.

Investimento
O dinheiro da aposentadoria passou a ser usado para comprar alimentos (muitas verduras e frutas) e produtos de limpeza, pagar contas de água e de luz, entre outras despesas. O salário, porém, não é suficiente. “A gente sempre viveu de doação. Eu tenho fé: quem faz o bem não fica sozinho. Levanto da cama pensando: Deus proverá. E alguém bate na porta e doa um punhado de carne. E assim vamos levando”, relata.

Mesmo com as dificuldades, ela não deixa de oferecer o melhor para seus pequenos. O cardápio é balanceado. Há sempre uma mistura para acrescentar ao arroz com feijão cotidiano. Seja carne ou ovo, nos pratos mais simples, o tempero é sempre caprichado. A verdadeira comida de avó. “Minhas amigas falam que usariam o dinheiro da aposentadoria para viajar. Mas nada no mundo vai me dar mais satisfação que o trabalho com essas crianças. O abraço delas é verdadeiro”, destaca.

Entre os pais de beneficiados pela ação solidária, há gente de renda muito limitada (ou nenhuma), como carroceiros e moradores de rua. Graça convive com muitas realidades. Algumas chocantes. Antes de ir para a creche comunitária, Eduarda* passava os dias na carroça, com o pai. Quando a fome apertava, revirava lixeiras em busca de comida. A menina se alimentava de frutas estragadas. Vivia doente. Quando seu caminho se cruzou com o de Graça, ela passou a ter horários organizados, banhos diários, saúde.

Outra hóspede, Natália*, vive em uma invasão com os pais. Quando chegou à Estrela Guia, começava a perder os cabelos. Graça estranhou. Levou-a a um hospital, onde foi detectado que a menina era atacada por fungos, provavelmente vindos de cavalos. A creche providenciou o tratamento. Natália quase ficou careca, mas agora começa a melhorar. “Se todos fizessem um pouco, o mundo seria menos violento. A criança amada se torna um adulto melhor”, ensina Graça.

Despesas
Os gastos, porém, são tão grandes quanto a satisfação em ajudar. As contas de água e luz, juntas, chegam a R$ 1,2 mil. O pagamento do telefone — usado para convidar novos voluntários — sai por volta de R$ 150. Carne, manteiga, leite e verduras raramente chegam como doação. Diariamente, são 60 banhos, pelo menos. As crianças passam a manhã e a tarde na creche. Só vão para casa depois de jantar. Nos fins de ano, Graça providencia cestas básicas para os pais. A intenção é suprir o período de uma semana de recesso de Natal e ano-novo.

Com o aprendizado da vida, Graça sabe que é preciso cuidar também das famílias. Ela promove reuniões entre as mães. Oferece também cursos gratuitos, como pintura em pano de prato e cabeleireira. “Essas mães, muitas vezes, têm a autoestima baixa. Algumas nem sequer abraçam os filhos. A gente tenta conversar. Nós somos um pouco de tudo, de amiga, médica a psicóloga.”

Quando as crianças passam dos 6 anos, é Graça quem faz a pré-matrícula de cada uma delas, em escolas públicas. Todas ganham uma festa de formatura, antes de se despedir. Graça gostaria de ter mais vagas e espaço, para poder abrigar gente de várias idades. Mas não há verba. Enquanto não encontra uma solução, a avó honorária vê os netos partirem. Protetora, tem sempre a sensação de que ainda são pequenos demais para explorar o mundo lá fora. Lugar tão diferente da pequena Estrela Guia, onde o carinho é a lei.

* Nomes fictícios, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

COLABORE
Quem quiser ajudar a Creche Estrela Guia pode ligar para 3567-0006 ou obter mais informações enviando e-mail para: crechestrelaguia@hotmail.com



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